quarta-feira, março 25, 2009

Visitação


E no domingo passado tive uma reunião com o conselho de igreja no qual falámos de visitação: Quando, quem e como é que eu iria fazer visitação. Fazer visitação na Igreja do Bebedouro é complicado. Muitas das pessoas vivem em aldeias sem nome de ruas, e muitas das ruas não têm número. O que significa que ou vou com alguém que conhece o sítio, ou sozinha nunca vou chegar lá.

A última vez que tentei ir visitar alguém sozinha, um irmão da igreja disse-me que a casa que eu queria ficava depois do 2º candeeiro aceso. Ora à distância que estava parecia que só havia 2 candeeiros, quando cheguei à rua havia muitos candeeiros acesos e enfrentei numa das casas 2 cães de guarda - "Olhe que estranho eles deixaram-na passar!" - Quando vi os cães a ladrar-me à janela do carro, eu tinha respirado fundo e saído do carro confiada que o tal irmão me teria avisado se na casa em questão houvesse cães perigosos, na verdade a casa que eu queria não tinha cães perigosos, mas esta não era a casa que eu queria - "Eles não costumam ser tão simpáticos" (eles não pareciam simpáticos), comentou o vizinho depois de me dizer que aquela não era a casa que eu procurava, mais à frente tentei despegar-me de uma vizinha simpática que queria saber EXACTAMENTE o que é que eu era e porque queria visitar quem eu ia visitar, e desfiz-me em desculpas para não apoquentar um vizinho desconfiado que lá resmungou que era na casa ao lado. Portanto é uma odisseia fazer visitação no campo.
Mas voltando ao assunto. Na tal reunião escrevinhei os nomes das pessoas a visitar, e os nomes são deliciosos:
Muitos ti qualquer coisa: Ti Olívia, Ti Piedade. Muitos filhos de... mãe de: Filha da Alcina, mãe do João. O Zé da Tila. E a mais interessante a Ti Maria da Loiça...

Os netos de novo.


E no outro dia dei por mim a observar os selvagenzinhos do Tojeiro. O olhar sempre à procura de quem está a olhar para eles. A necessidade constante se serem notados, de não passarem despercebidos. Olham para mim para ver se eu os estou a ver. Desafiam com o olhar. Grande solidão deve ir naquelas almas que não sabem dizer que estão tristes, e por isso causam tristeza aos demais.

Um deles seria um óptimo aluno se quisesse (ou a vida premitisse). Um amigo meu que trabalhou com crianças de rua na cidade do México, diz que os miúdos que fugiam de casa eram normalmente os melhores miúdos. O N. é inteligente, até é simpático com alguns miúdos e ajuda-os nas fichas, mas depois há dias em que risca e rasga os cadernos dos outros. Dá uma tapada nos livros e folhas dos outros para elas caírem. Grande vulcão deve ir lá dentro. Quando o mando para fora da aula, normalmente acalma - sem audiência faz tudo com ar triste mas perfeito. Outros dias foge.

Dou voltas à cabeça. Como é que eu posso ser uma bênção para estas crianças (ao mesmo tempo que lhes tento ensinar inglês)?

Sinto que tenho que estar lá para ajudar. Mas o caminho não é claro. Entre dias em que estou fartas deles. E os momentos em que percebo que que eles precisam de alguém que lhes mostre interesse.
Day by day...

sexta-feira, março 13, 2009

Os Netos de Rousseau


Depois de vários anos em acampamentos com crianças difíceis, de lidar com adolescentes pré-delinquentes e mesmo delinquentes (daqueles que batem, espancam, roubam, incendeiam coisas, etc..) com os quais nunca tive qualquer problema em me relacionar, nada me preparava para dar aulas a miúdos de 8 anos completamente libertos de algum valor de civilidade ou respeito.

Durante algum tempo as coisas acalmaram nas tais aulas de inglês. Mas ultimamente, seja a primavera, seja o vento a verdade é que especialmente numa das escolas o mau comportamento é uma constante. No outro dia ao entrar na escola vi uma auxiliar a rebocar um miúdos que tinha batido numa colega, enquanto a outra tentava sentar um outro aos pinotes. Um dos meus alunos entrou na aula logo a bater e a puxar o cabelo da colega, enquanto outro gritava em plenos pulmões e passava uma rasteira a outra menina, e um outro se ria e se deitava no chão, para chavascal dos restantes.
Acho que não tenho soluções.
Uma das professoras titulares diz que vai já este ano para a reforma porque já não aguenta, e a outra conta os anos para se reformar.

8 anos! Oito anos têm as crianças que fazem desmorecer gente que se entregou ao ensino toda uma vida. E os pais? Pois muitos deles acham que os filhos têm o direito à escola como toda a gente tem o direiro de poluir e usar os recursos da terra: Sem deveres, sem cuidado, sem respeito. Uma mãe de uma escola ao lado vangloriava-se, no café da terra, de ter virado a mesa à professora e "A sorte dela (professora) - continuava a mãe a dizer - foi eu estar de bom humor, senão partia-lhe a cara toda!" Porquê? Porque a professora lhe disse que o filho era mal educado. O que provavelmente era mesmo verdade. Acho que os professores deviam ser espécies protegidas, daquelas em que se tem que pagar multas por por em perigo.

O que acontece é que muitos destes miúdos aprendem que não precisam de respeitar nada excepto a força - tenho a certeza que a maior parte deles apanha e apanha forte em casa, o que leva a que só parem quando apanham - mas não respeitam o outro só porque é um ser humano. Estes pais estão a criar gente violenta que não se quer esforçar. Que acha que tem direito a tudo sem trabalhar. Que acha que só porque pode, deve causar mal aos outros. No fundo eles esperam que eu lhes bata e como eu não o faço, pensam que como não há consequências, podem portar-se mal.
Não acho que as estes miúdos tenham nascidos selvagens, mas acho que ninguém lhes ensinou respeito, deveres, cuidado. E percebe-se os miúdos que têm lares estáveis e pais que são pais a sério. Podem ter dificuldades, podem fazer barulho, podem desobedecer, porque é normal mas não prejudiacam os outros de propósito. Nada substitui o lar, e à escola chegam miúdos sem qualquer estrutura ou princípios.

Muitas vezes os programas ensinam que é preciso estimular, fazer interessar, divertir os alunos. Concordo com aulas diferentes, interessantes, desafiadoras, mas no final há sempre uma dose de esforço que é necessária para aprender: No mínimo ouvir as regras de um jogo, estar calado quando os outros jogam, não roubar/destruir/riscar os cartões/desenhos/brinquedos do vizinho, não atropelar os outros para passar à frente, não fazer batota. Mesmo nos jogos há regras.

Eu teria uma regra: A escolaridade deveria ser gratuita para todas as crianças que se portassem bem (e portar bem não significa ser um santinho). Mas os pais que não acompanhassem os filhos, que não os ajudassem, que desafiassem a orientação dos professores, que têm uma vida tão destruturada que isso se repercute no modo como os seus filhos se relacionam com os colegas e professores deveriam pagar a escola e/ou ser obrigados a frequentar cursos para pais. Porque ter um professor é um privilégio. Ter alguém que dedica horas a outras pessoas devia ser reconhecido e não pisoteado. Estas crianças são esponjas, espelhos do que aprendem em casa e levam para a escola. E devemos-lhes o esforço de lutar pelo seu futuro. E se os pais não conseguem sozinhos há que os ajudar, ou forçar a receber ajuda. E no fundo eles são ainda umas crianças, que choram quando perdem a borracha, que me pedem para afiar o lápis quando o bico se parte. Têm oito anos.... Crianças que de tão revoltadas têm que espalhar a sua dor à sua volta. Sinto um misto de pena e de saturação quando penso nos meus alunos problemáticos.Pobres crianças mal-educadas!

Mas digo-vos que prefiro um dúzia de adolescentes dos bairros problemáticos de Lisboa a estes netos campestres de Rousseau.

terça-feira, março 10, 2009

Máquinas


Na província não há transportes públicos dignos desse nome. Uma camioneta de manhã e outra à tardinha, para algum sítio é o máximo que se consegue. Trabalhando o marido perto de Ílhavo e eu no Bebedouro e Tocha, precisamos desesperadamente de comprar um veículo motorizado - não pode ser bem um carro porque as finanças não o permitem.

E no reino dos carros usados a frase típica dos vendedores é: "Está como novo!" O marido foi ver um dos tais que o vendedor assegurava "estar como novo". O chaço velho em questão, desconsolado e de pneus em baixo, não convencia o meu marido. "É de 83, mas está como novo!" Repetia esperançoso o vendedor. Olhando para dentro do Peugeot 205 - que teria supostamente 4 lugares - repara o marido que lhe falta um dos bancos traseiros. Incrédulo, o marido reolha o veículo para ver se estaria o banco rebatido, mas não, no lugar do banco estava mesmo um espaço. Não parecendo impressionado com o facto o vendedor continua impávido a falar do bom preço e da tal qualidade suprema de "estar como novo."

Outra coisa que reparei é que quanto mais estafado e desconjuntado está um veículo, mais "inhos" se usa para o descrever.

Um carro é bom, tem uma mecânica impecável, e vai durar uns bons anos. Dos desgastados e baços veículos idosos diz-se: "o carrinho está em muito bom estado", "o motorzinho está muito jeitoso", "as mudanças estão muito boazinhas", "a mecânicazinha está muito aceitável," "O carrinho ainda vai durar uns aninhos".

sexta-feira, março 06, 2009

Ordenação - reflexões

1. Havia um homem que decidiu fazer um banquete e convidou os seus vizinhos, amigos e conhecidos, alguns deles recusaram ir dizendo: "Tenho outras coisas para fazer". "Tenho coisas que me impedem de ir." Então vieram da rua pessoas que o senhor não conhecia e quiseram descobrir o que era aquela festa, e porque celebrava assim o senhor.
Aqui vão os momentos mediáticos:
http://tv1.rtp.pt/noticias/?headline=20&visual=9&tm=8&t=Mulher-ordenada-pastora.rtp&article=205446

http://ww1.rtp.pt/multimedia/index.php?tvprog=1115

2. O impôr das mãos é confiança e envio. Depositam-se esperanças e necessidades. Envia-se com o desejo de futuro. O impôr das mãos é dizer: "Que bom que o nosso Deus te trouxe até aqui!" É dizer: "Que o Senhor te empurre daqui em diante!" O impôr das mãos é carrego que atasca, é leveza que faz voar. Numa ordenação é-se abençoado para servir.

3. Ser pastor/pastora, é um caminho sem mapa, com poucas áreas de serviço, com muitos pneus furados, avarias, despistes e embates. Olham para nós como se devêssemos ser perfeitos e rejeitam as nossas fraquezas, enganos, cansaço. Pensam em nós como super-homens/mulheres. Mas um pastor sabe que é o mais fracos de todos, porque muito lhe é pedido. Só agora durante o estágio a aura de proximidade divina se transformou na luta diária para não largar a mão de Deus. Dizia-me um querido pastor amigo, no dia seguinte à ordenação: "Ser pastor é escolher também o caminho do sofrimento."

4. Basicamente ser pastor é ser luz no meio das trevas. Mas abomino as trevas. Queria viver no mínimo à média luz. Queria ser candeeiro de uma rua bem iluminada. Aquele candeeiro que está aceso durante o dia e quase não se dá por ele. Nada assusta tanto como estar sozinha, diferente, destacada no meio da maioria. E ser pastor é ser luz que luta. Não queria lutar. Queria companhia, consolo, segurança.

5. Ser pastora é luta a dobrar. É preciso justificar. Mostrar que se é digna. Que se é capaz. O mundo religioso ainda é feito à imagem masculina. Nós somos excepção. A novidade. Aquela que é preciso provar se...

6. E como sempre -
Mesmo depois de ordenada -
Se dizemos o que pensamos,
há sempre um homem que nos diz:
"Mulher está calada!"